quarta-feira, 21 de outubro de 2009

James, o Sapo

James tinha um rosto estranhamente redondo, raspava a cabeça e tinha uma boca alongada horizontalmente que mais parecia um sapo. James era um Sapo. Ganhou o apelido quando levou para sala de aula uma foto. A foto em questão mostrava James soprando três velas na sua festa de três anos. No bolo um desenho de um sapo estava voltado para a câmera e, para um desavisado, pareceria que o desenho havia sido feito com base em uma foto de James. Rodrigo viu a foto e logo gritou: “Olha um sapo soprando outro”. James tinha cinco anos e desde então se tornou o Sapo.

O apelido parecia não corresponder somente a sua imagem, mas também a personalidade. Desde os quatro anos passava seu tempo livre em um riacho ao Norte da cidade, com calças dobradas até o joelho e os pés descalços pisando em pedras alisadas pelo correr das águas. Também gostava de sentar no toco de uma árvore grande e morta que havia sido cortada no ano em que ele nasceu e feita de banco para seu pai fumar cachimbo no fim da tarde. Desde a morte de seu pai o Sapo havia tomado aquele “banco” para ele.

Era comum Rodrigo passar na sexta feira e tirar James do banco para ir jogar bola na cancha de areia do bairro. Apesar de ter dado o apelido que seguiria James por toda sua vida, os dois acabaram se tornando amigos.

Era uma amizade muito peculiar. O gênio de ambos não poderia ser mais diferente. Enquanto o Sapo tentava caçar seus amigos girinos no fundo do riacho, Rodrigo se entretinha em grupos grandes, jogando bola, correndo de pega e outras brincadeiras de crianças comuns na época. Os dois sentavam lado a lado na sala de aula, mas no resto da tarde pouco se viam. Exceto nas sextas em que James tinha permissão de jogar bola

Digo ter permissão pois, desde a morte de seu pai, Carla, sua mãe, tinha um zelo especial e um pouco agressivo para com James. E contraditório. Deixava o rapaz sair sozinho por toda a cidade mas, quando era para sair com outras crianças, só nas sextas feiras. Acreditava que ter um contato muito intenso com outras pessoa poderia ser prejudicial, pois tiraria seu filho aos pouco de perto dela, assim como seu marido foi a deixando aos poucos por uma cama de hospital. Tal zelo foi determinante no caráter de James.

***

De pé, em frente a sua casa, James olha para onde passou toda sua infância e princípio de adolescência. Ao seu pé esta uma mala, a mesma que ele levou cinco anos antes para o internato onde foi estudar. Sua mãe deve estar lá dentro, preparando o almoço com Alice, a empregada de sempre, enquanto ambas esperam sua chegada. No toco de árvore não há ninguém sentado. Nesses cinco anos, pensa James, ninguém deve ter sentado ali. Permanecera vazio a sua espera.

Foi muito difícil para o Sapo deixar sua mãe, sua casa, a Alice e todo aquele lugar para partir para o desconhecido. Tinha dezesseis anos quando entrou no ônibus que o levaria à capital. Foi sozinho. O plano era ter ido com Rodrigo, mas esse, de tanto passar o tempo com seus outros amigos, acabou reprovando um ano e ficou para trás. O Sapo nunca o havia perdoado por isso, por ter de entrar naquele ônibus sozinho, naquela tarde nublada, rumo à capital. Agora ninguém sabe de Rodrigo. Foi para Porto Alegre um ano depois de James e por lá ficou até deixar de mandar notícias para a família, deixando todos em um estado de espera desiludida que dizem ter matado sua mãe. James não o perdoava por isso também.

Enquanto espera para entrar em casa, Sapo lembra sua infância, mais particularmente sua primeira briga. Estava no seu toco, em uma sexta feira, quando Rodrigo o levou para jogar bola. Sapo tem até hoje a certeza de que não havia cometido aquele pênalti, mas só Rodrigo acreditou. Ouviu-se alguém gritar que iria ver que cor de sangue tem um sapo. Acabou que era vermelho mesmo. Rodrigo interveio à favor de James e mostrou que seu sangue era vermelho também, assim como o dos outros colegas que entraram na briga.

Foi a última partida de futebol de James. Sua mãe o proibiu de sair na rua por meses e de jogar bola para sempre. A amizade com Rodrigo cresceu nesses meses de internamento. Passou a freqüentar a casa do amigo quase diariamente e ficou íntimo de Dona Carla que o tratava com dureza, mas carinho. Dona Carla nunca entendeu o sumiço de Rodrigo, mas aparentemente o perdoou.

***

Encontrou sua mãe na cozinha como imaginava. A reação dela foi de uma surpresa tamanha que não parecia que ela esperava a chegada do filho a vinte dias, quando esse desistiu da faculdade e foi para casa. Se abraçaram forte e ensaiaram uma pequena dança que era costume dos dois desde sempre. Mas somente Alice chorou. Chorou profundamente e quando abraçou James, a quem chamava de moleque, acabou molhando a camisa do outro com suas lágrimas.

Todos da pequena cidade sabiam que James iria largar a faculdade eventualmente. Sabiam que ele não era feito para aquilo. Somente sua mãe mantinha a ilusão de ter um filho capaz de ser inteligente como o pai. Acreditava tanto que fez uma força descomunal para viver todo aquele tempo longe do filho. Foi Alice que convenceu Carla de que o melhor era ela dar um pouco de liberdade para o filho. Quando este mandou a carta dizendo que havia largado os estudos e dentro de vinte dias estaria em casa ela se sentiu traída. Teve raiva, chorou, teve discussões com alguns do bairro, mas a idéia de ter o filho de volta em casa a confortou. Secou as lágrimas, fez as pazes com os que havia brigado e finalmente admitiu que seu filho era incapaz de se formar.

Já o Sapo sempre soube. Chegou a uma faculdade devido à influência de um dos diretores, que havia estudado e dividido quarto com seu pai naquela mesma faculdade. Levou uma semana para entender que tinha que trocar de sala de acordo com a aula e só foi descobrir que podia emprestar livros na biblioteca outras duas depois. Tudo teria sido mais fácil se Rodrigo estivesse ali. Mesmo tendo repetido de ano, Rodrigo era inteligente, indisciplinado mas inteligente. Seria um companheiro perfeito para a faculdade. James também nunca o havia perdoado por não estar lá.

A gota d água para James largar a faculdade foi quando teve de fazer as seis matérias obrigatórias daquele semestre e mais três que estavam atrasadas. Com isso não teria o prazer de nadar nos fins de tarde nem de ir ao cinema nos fins de semana.

Havia uma piscina no terreno da faculdade. Apesar de ser um sapo, James não sabia nadar muito bem e se contentava em passar horas na parte rasa. Gostava de ver como a mão ficava enrugada e um pouco arroxeada depois das horas de imersão. Nas sextas feiras, como estava proibido de jogar futebol, ia ao cinema e lá ficava até às seis quando começava a escurecer. Tinha medo de andar nas ruas da capital no escuro.

No seu último dia no dormitório da faculdade não teve de fazer muitas despedidas. De amigos só tinha um professor que tinha o péssimo hábito de não ver a realidade, de achar que todos eram capazes de tudo, só lhes faltava dedicação, e o faxineiro do andar do seu quarto. O faxineiro tinha problemas com a bebida e sempre ficava no quarto de James bebericando seu conhaque direto da garrafa. James nunca soube que aquilo era proibido em todo o dormitório. Talvez nunca tenha percebido que aquilo era álcool.

Feitas as despedidas foi até o terminal de ônibus de Florianóplois e partiu para casa.

***

Completava um mês que James havia voltado a sua casa. Nas duas primeiras semanas quase não saiu. Passava todo o dia ouvindo as histórias da mãe e da Alice. As duas sempre foram amigas, mas na ausência de James se tornaram carne e osso. Logo que ele foi à capital, o marido de Alice morreu de infarto. Como não tinha filhos, foi morar na casa de Dona Carla, no quarto que antes era de James. Os laços de trabalho acabaram e as duas viveram como se ambas fossem donas da casa.

Quando começou a sair pela cidade, matava saudades dos passeios de antes. Voltou a freqüentar o riacho, mas por menos tempo que a piscina, pois fazia um frio brutal e não demorava para as mãos ficarem arroxeadas. Sentava-se também no toco de árvore e lá ficava por um bom tempo. Certa vez passou uma pessoa de outras bandas e, devido ao olhar compenetrado do Sapo, teve impressão de que estava diante da pessoa mais inteligente da cidade, que passava o tempo perdido em pensamentos construtivos.

Nas noites os três sentavam diante do forno à lenha e lá ficavam até o sono chegar. Como as mulheres trabalhavam duro na limpeza da casa, esse não demorava. James permanecia diante do forno. Antes de dormir ia até a porta do quarto da mãe e ao seu antigo para ver se todos respiravam. Depois ia para sala que havia se tornado seu novo quarto.

***

Rodrigo voltou mudado. Tinha a barba crescida, os cabelos também. Era alto, estava com a pele muito branca, mas parecia saudável. Uma vizinha de Rodrigo contou a Dona Carla que ouve momentos de ódio e de pura comoção quando este entrou em casa. Foi recepcionado com uma frieza odiosa que durou pouco, logo seu pai o abraçou e chorou de tal forma que levou as lágrimas todos que assistiam. Rodrigo ficou sabendo da morte da mãe. Sua reação pareceu de indiferença mas logo caiu em pranto, aos pés do pai.

Não contou muito do que havia feito naqueles últimos anos. O que contou parecia mentira ou fantasia. Passara um bom tempo em Curitiba, descarregando e carregando caminhões, fazendo outros bicos e vivendo com uma moça e com o filho dela. Quando perguntado do porque de seu sumiço calou-se e seus olhos ficaram perdidos no espaço por um longo momento.

A vida na cidade naquela época resplandecia. O calor estava voltando, as pessoas se reuniam nas ruas para conversar, formavam rodas de chimarrão. James não saía de casa a um bom tempo. Desde a chegada de Rodrigo, este tentava visitar James. Sempre sem sucesso. Dona Carla e Alice tentavam convencer o filho a perdoá-lo mas era em vão. O Sapo permanecia em sua clausura até a noite com medo de encontrar Rodrigo nas ruas e só saia depois que escurecia para mergulhar no riacho.

***

Certa noite Rodrigo foi à seu encontro no riacho. A princípio a reação de James foi das piores, mas acabaram conversando e fazendo as pazes. Os dias que precederam o encontro foram alegres para os dois. Rodrigo contava de suas aventuras em Curitiba, falava sem parar. Sapo se contentava em ouvir e imaginar como seria ter tido aquela vida. Mas nenhuma palavra do internato.

Rodrigo freqüentava a casa de Dona Carla quase que diariamente. Chegava cedo, saia para um passeio com James, jogava bola enquanto Sapo assistia e depois iam se banhar no riacho. Este era freqüentado por outras pessoas, algumas moças inclusive. Rodrigo tinha facilidade com elas.

Foi nessa época em que James conheceu a amizade com alguém que não fosse Rodrigo: uma moça cuja reputação e beleza eram duvidosas. Com ela também conheceu o sexo. Estavam os três sentados na beira do riacho, era tarde de domingo e chovia um pouco, ninguém mais se encontrava por lá. Rodrigo disse que ia nadar em um ponto mais baixo e deixou Sapo e a moça sozinhos.

O nome dela era Vitória, mas todos a chamavam de Vi, menos James que não se sentia à vontade. Com a desculpa de que fazia frio ela se chegou a James e o abraçou. Pediu para ser abraçada. Colocou sua mão no peito branco e sem formas de James e foi descendo. Rodrigo voltou meia hora depois e encontrou somente James deitado com ar de perplexidade e satisfação no rosto.

***

A alegria de todos acabou em uma sexta feira. A cidade em questão era muito pequena e todos conheciam todos. Era segura, nunca havia tido notícias de brigas ou roubos e a única coisa parecida ligada a polícia era na intendência municipal onde bêbados passavam as noites e era cuidada por três pessoas apenas. Por isso todos estranharam quando apareceu por lá uma viatura da polícia vindo direto da capital. Dois policiais tinham ordem de prender Rodrigo de Souza sobre acusação de assassinato.

Quatro anos antes, quando Rodrigo acabava de chegar ao internato, havia se metido em uma briga por causa de mulher. Ela dizia que seu namorado tentava estuprá-la e Rodrigo interveio a favor dela. O namorado acabou morte e Rodrigo fugiu assustado.

Naquele dia chovia forte e Rodrigo almoçava na casa de Dona Carla. Os policiais bateram e, antes que alguém fosse abrir, eles foram logo entrando. Contaram para Carla e Alice, que estavam na sala com Rodrigo, o que havia acontecido. Este nem esboçou alguma reação violenta ou tentativa de fuga. Um dos policias o algemou enquanto o outro foi para o carro.

James ouviu tudo da cozinha, descrente, perdido. Mesmo sendo um pouco lento de raciocínio podia perceber que aquilo não era bom e que levariam seu amigo para sempre. Levariam seu único amigo, aquele que o defendera no futebol e que lhe apresentou a Vitória.

O carro lá fora estava ligado, o policial que estava fora levava Rodrigo algemado pelo jardim. Passavam pelo toco de árvore quando James correu de dentro da casa e, com um cutelo, atacou o policial pelas costas. A multidão que se encontrava na rua ficou perplexa, o policial que estava no carro sacou sua arma. James correu em direção ao quintal pela lateral da casa onde pulou uma cerca e foi na direção norte da cidade. Um tiro passou zunindo pelo seu ouvido e o policial correu no seu encalço.

Enquanto James corria pensava em seu pai. Tinha a vívida imagem dele sentado no toco da árvore, fumando seu charuto. Chegou a ver seu pai lá sentado enquanto atacava o policial e pode até mesmo pressentir que ele o apoiava.

Chegou no riacho. A corredeira estava forte e o nível havia aumentado bastante. James foi entrando na água. Quanto mais se assustava mais fundo ia e os tiros do policial o assustavam muito. Foi indo em direção a parte mais funda, cada vez mais funda até a hora que a correnteza o levou.

***

Não se sabe se James foi atingido por uma bala ou se simplesmente se deixou levar pela correnteza. Seu corpo nunca foi achado.

Mesmo sem corpo toda a cidade, com exceção de Rodrigo, foi até o enterro. Dona Carla parecia inconsolável, assim como Alice. Foi rezada uma missa em que o padre levou muitos às lágrimas, inclusive a si próprio.

Alguns mais esperançosos, por mais que digam o contrário, acreditam que James conseguiu fugir e que a qualquer dia volta. A grande maioria pensa que ele morreu com um disparo. Mas de todas as teorias, a que Dona Carla mais gosta é daquela que dizem que ele nadou, nadou tanto que acabou tomando sua verdadeira forma de sapo e que agora passeia aos pulos pela cidade. Acredita que qualquer hora o verá sentado no toco da árvore ao lado de seu pai.

sábado, 17 de outubro de 2009

A Volta do Não Diálogos

Depois de todos os comentários e emails que recebi, decidi dar uma sobre vida ao Não Diálogos. Fico grato a todos que escreveram e espero que continuem lendo.
Logo coloco mais um post.
Abraços.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Fim do Não Diálogos

Chega, isso foi longe demais.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

19 Anos

So nobody ever told you baby

How it was gonna be…

Gun´s and Roses

Não, ninguém lhe havia dito. Agora ela se encontra em casa, sentada na mesa da cozinha, um caneco de café à sua frente, a solidão ao seu redor. Completou ontem seus vinte anos. Da adolescência que acaba ela guarda em si as cicatrizes de acne no rosto e a certeza de que essa foi uma etapa que passou e ela não aproveitou. Não teve namoros efêmeros, não foi a bares com amigos... Diabos, nunca nem os teve.

Se levanta e vai até a geladeira onde resta um pedaço de bolo da noite anterior. Muito marshmallow e frutas, muito creme e velas, mas poucos para comemorar, somente seus pais. Pouco também a ser comemorado.

Na cadeira a sua frente se encontra o tédio, dentro do peito a angústia. No telefone uma esperança remota, a espera de algo, não se sabe o que.

Levanta e se serve de mais um caneco de café, desta vez com leite. No ano passado as coisas foram diferentes. A Júlia estava na festa e um pouco de alegria se encontrava lá. Dali as duas foram para o bar e trocaram o primeiro beijo. Antes daquilo tinham sido só expectativas, sonhos.

As duas se conheceram pouco tempo antes. Júlia era secretária de seu pai, cinco anos mais velha e sabia tocar piano. Começou a ensinar piano para ela por insistência do pai que queria tirar sua filha da mesmice que se encontrava. E deu certo. Naqueles três meses de aula que antecederam seu aniversário de dezenove anos as coisas foram diferentes. Carla, que agora se lembra daquela época enquanto olha fixamente para a xícara de café, foi uma pessoa diferente naqueles breves três meses.

No começo tinha aversão ao piano. O piano lhe lembrava os encontros de família em que sua avó, agora falecida, tocava horas e horas suas músicas “clássicas” enquanto todos ficavam a sua volta fingindo admiração e tentando esconder os bocejos. Nesses encontros seus primos levavam seus pares. Carla nunca chegou a levar nenhum amigo, não os tinha.

Mas Júlia lhe mostrou que nem só de “músicas de vovó” vivia o piano e ensinou a tocar Easy do Faith No More. Era uma música fácil e até Carla que se considerava uma medíocre em tudo conseguiu tocar com precisão.

Nasceu aí um coleguismo que virou amizade. Terças e quintas depois de seu expediente no escritório, Júlia ia para casa de seu chefe e ensinava Carla durante dez minutos. Depois disso as duas se sentavam diante do piano enquanto conversavam e Júlia tocava algo. O pai de Carla bem sabia que ela não estava aprendendo nada, nem se esforçava, mas sabia que aqueles encontros faziam bem para filha. Desde que havia saído do segundo grau e decidido tirar umas férias antes de pensar em faculdade, Carla não acordava cedo, não se importava com nada exceto seu aparelho de som.

Uma coisa que Júlia teve muito êxito foi em ensinar uns tipos diferentes de música para Carla. Esta última deixou de ouvir tanto Radiohead e músicas tristes e passou para o pop, músicas indies e afins. Também conseguiu ensinar Carla, em apenas um dia, a tocar parabéns para você que no dia seguinte tocaria diante dos pais e de Júlia durante sua festa de seus dezenove anos.

Fazia uma semana que ela não dormia. Faltava pouco para seu aniversário e ela ainda tinha a intenção de seguir com seu plano: se declarar para Júlia e torná-la algo a mais que amiga. Ela tinha a impressão que seu pai pressentia seus planos e que de alguma forma apoiava. Sua mãe lhe olhava estranho, talvez coincidência. Mas tudo o que lhe importava era a reação de sua amiga. Passava noites em claro não pelo medo e sim pela expectativa, pelo desejo. Sim, um pouco de medo também. Nunca tinha feito aquilo, nem com um rapaz.

A noite da festa chegou, estavam todos os quatro empolgados, principalmente Carla. O bolo com marshmallow, creme frutas e velas estava sobre a mesa. Seria uma comemoração breve pois as moças tinham que sair. Estava bem vestida, perfumada, maquiada. Todos estranharam aquela preparação toda, mas afinal, não sabia se vestir para ir a um bar. Este estava lotado. Ficaram na fila por um tempo, que por sorte passou logo e, ao atravessar a porta, Carla era alguém diferente. Dançou, bebeu pouco mas bebeu, flertou com rapazes de forma inocente sobre os olhares orgulhosos de Júlia.

Até que a beijou. A princípio Júlia retribuiu, as duas ficaram naquele momento de cumplicidade por um bom tempo. Olharam nos olhos uma da outra. Carla em puro êxtase, Júlia em assombro. Esta última não conseguia atinar nada, esquivou a tentativa de um segundo beijo e se foi.

Carla se quedou sozinha na pista do bar. Esperava por algo como aquilo, mas não esperava que Júlia não voltasse a dar mais aulas e confabular por horas durante a noite.

Seu pai parecia saber de tudo e a tentou consolar. Sua mão engoliu o orgulho e fez o mesmo. Uma semana depois e a sua rotina tinha voltado a ser a mesma de antes: acordar tarde; não fazer nada; dormir cedo.

Não, ninguém lhe havia dito como seria. Ela aprendeu da maneira mais difícil. Os dedos de Júlia nas teclas brancas e pretas ainda povoam sua mente. Enquanto olha para a xícara e pensa, da um pequeno sorriso. Foi um bom aniversário no final das contas.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

2016

Don’t Let Me Down

The Beatles

Lá fora faz calor, mas as nuvens começam a encobrir e céu anunciando chuva. O condomínio com seus trinta blocos e sua quadra de esportes no centro estão vazios. Todos que não estão trabalhando se encontram em casa, todos assistindo o mesmo canal. Em instantes será anunciada a sede das Olimpíadas de 2016. Em algumas janelas pode-se ver bandeiras do Brasil estendidas e em alguns momentos se ouvem buzinas soando em algum lugar.

Ele também se encontra em casa. Está sentado em um sofá de três lugares com sua TV de plasma ligada no canal do anúncio. São 13:29 e a qualquer momento será feito o pronunciamento. Mas sua mente não está ali. Esta na viagem que fará dentro de meses.

Talvez algum dia consiga, mas no momento não, dizer o que o fez ter aquela idéia da viagem. Nas suas aulas de Espanhol as pessoas diziam o quanto era barato estudar na Argentina, das vantagens, dos passeios que se pode fazer. Mas o ponto que mais lhe chamou a atenção é que todos aqueles que estudavam com ele eram viajados, tinham trazido cultura de outros países, de outros lugares. Até ele admite que foi um pouco de inveja que o fez querer viajar, mas não somente.

Ontem ele terminou mais um livro e dele surgiu mais uma hipótese: viajar para terminar de nascer. Sim, Buenos Aires seria sua casca do ovo e ele teria de quebrar sozinho. Ninguém estaria por perto. Essa idéia lhe dava calafrios. Não demorou tanto assim, já agora ele sabe que a viagem é mais que uma aventura, mais que experiências culturais e lazer. É uma viagem que vai determinar como será sua vida daqui em diante.

Na TV se vêem fogos no dia claro, as pessoas se abraçam, estouram espumantes. O Brasil vai sediar as olimpíadas. Ele até poderia colocar um ponto de exclamação mas não esta eufórico. Deitado no sofá se encontra em um estado de modorra, pré sesta. Não sabe dizer se aquilo é um princípio de sonho ou se é a realidade. Se for realidade ela está deturpada pois ele não está totalmente desperto. Ele se encontra agora nas ruas da Recoleta com diversas pessoas ao seu redor comemorando o feito. Mas que feito ? Os jogos não serão aqui. O que tantos “hermanos” comemoram, com camisas da seleção Argentina e bandeiras tremulando no ar ?

Uma voz mais alta na TV o desperta por completo. É o Presidente que agora faz um pronunciamento.

Ele se levanta e vai lavar o rosto no banheiro. Sabe que após lavar o rosto se sentira melhor, mais animado, pronto para os preparativos. Não foi dito ainda, mas os preparativos da viagem começam hoje. Ele já recebeu seus papéis do colégio onde vai estudar, sabe onde vai dormir e pode começar os preparativos.

Na mesa da sala se encontram alguns guias, panfletos que ganhou na agência e um computador. Pesquisa intensamente, alternando os guias com a Internet. Sabe agora o que fazer nos primeiros dez dias. Viu tantas fotos e mapas que parece ser íntimo da cidade.

Mas ele sabe que não são esses os preparativos que tem de fazer. “Para acabar de nascer” – pensa em tom professoral – “é preciso ter o corpo pronto”. Para quebrar a casca tem de estar com o corpo forte, pois não será fácil. Parar de fumar foi o primeiro passo, mais difícil do que todos imaginam, mas ele conseguiu. Mas ainda não consegue acordar cedo. Não consegue parar de depender dos outros. Três meses parece bastante tempo, mas talvez não seja suficiente. Sabe cozinhar, mas não cozinha. Sabe o que deve fazer, mas não faz.

O roteiro está quase pronto, memorizado. O espanhol está afiado, mas será o suficiente? Não é.

Só os Beatles o podem ajudar. Talvez por eles terem milhares de músicas e outras dezenas de milhares de refrões, os Beatles são sempre a resposta para problemas. Ele corre o dedo pelo seu iPod em busca de uma música que pode servir. Sabe que vai achar. Don´t Let me Down. Não, ele não pode decepcionar a si mesmo. Simplesmente não pode e não vai. Vai andar pela Recoleta, por Córdoba, pelas cidades vizinhas, vai visitar o El Ateneo e tudo isso de cabeça erguida, firme em seus propósito e socando a casca o máximo que puder.

A música o deixa extasiado. Agora na TV uma apresentadora diz coisas (ele não ouve pois colocou a TV no mudo) propondo um brinde. Lendo os lábios dela ele consegue entender: “Agora um brinde para aqueles que tem coragem, que tem o poder sobrenatural de ver o problema e agir sobre eles, quem vêem as dificuldades mas que são mais fortes que ela. Para todos esses, um brinde”. Ele ergue seu copo de Coca e agora a voz dos Beatles dizem (imploram?) Don´t Let me Down.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

CTRL + R

Para quem não sabe, CTRL R, quando pressionado em um navegador de Internet tem o poder de atualizar a página que está sendo visitada. Com dois simples botões um novo mundo, atualizado e recente se abre diante as pessoas.

Camargo sabia perfeitamente isso. Fazia duas semanas que sua mão pequena e gorda apertava tais botões de maneira frenética, com intervalo tão pequeno que uma pessoa que vê de fora taxaria aquilo como ridículo no começo, patético com algum tempo. Mas ele não cessava. Era de seu conhecimento que sua página de emails se atualizava automaticamente com uma regularidade de dez minutos, mas sua ânsia, sua expectativa de receber a mensagem fazia com que esse intervalo se tornasse grande demais, uma tortura.

Naquele dia, fazia duas semanas exatas que sua rotina era a mesma: de bermuda de banho e um chinelo havaianas nos pés, uma camisa de mangas compridas em seu corpo gordo e baixo, ele seguia em frente ao computador em sua tortuosa expectativa. No intervalo de cada atualização ele perdia seu tempo com outros sites, navegação besta e sem propósito.

Não somente os terceiros que olhassem de fora aquela cena sentiriam pena daquela criatura. Ele algumas vezes se encontrou a pensar no despropósito de tudo aquilo, mas a inércia era muito grande e o manteve sentado em frente aquele computador todo aquele tempo.

Camargo havia se formado a pouco. Sua graduação em biologia tinha se dado de forma medíocre, o suficiente para que em seis anos ele houvesse concluído o curso, colado grau e tivesse permissão para apagar de sua mente todo o conhecimento adquiridos de invertebrados, platelmintos, pseudópodes e afins. Apagou com gosto as experiências com os colegas de classe e de suas andanças pelo campus arborizado da faculdade.

Uma das lembranças que custavam a sair de sua mente era a do dia do trote de iniciação do curso. Coberto de lama, vestido com um saiote e com os lábio e arredores cobertos de batom, Camargo permaneceu durante horas de pé em uma esquina arrecadando dinheiro que supostamente iria usar para pagar os livros do curso, mas que na verdade seriam para pagar os engradados de cerveja da festa que daria continuidade ao trote, a qual ele não participou. Estava claro para ele que foi aquele o dia decisivo em que a Biologia, a faculdade e todo o convívio com pessoas havia deixado de fazer sentido. Nunca havia sido tão humilhado. Agora, em frente ao computador, apertando CTRL R a intervalos mínimos, ele percebia o quanto estava humilhando a si mesmo, perante ele mesmo.

Engana-se quem pensa que não recebia mensagens. Recebia muitas. Ávido comprador de lojas on-line, recebia uma porção de propagandas e informações sobre diversos produtos, de diversas lojas, em sua maioria de computação. Sentia que já era amigo de pessoas com nomes bizarros como "no-reply", "atendimentoaocliente", "mailer", todos seguidos de arroubas e seus respectivos sobrenomes. Mas a mensagem que ele tanto esperava não chegava.

E se não chegasse nunca ? E, se ao completar o décimo quinto ano de espera e nada houvesse chego, quando ele igualasse a marca do coronel que, esperou por uma carta por quinze anos e nunca a recebeu, o que faria ? Procurava não pensar nisso. E mesmo que tentasse teria a certeza de não conseguir. Sua mente estava presa em apertar aquelas duas teclas. Os diversos catálogos eletrônicos, os jogos que ocupavam seu tempo entre as atualizações não representavam nada para ele. Sua cabeça era um vácuo incapaz de libertar-se.

No décimo quinto dias, logo que acordou se deu conta da felicidade em que se encontrava. Um cheiro de café fresco vinha da cozinha, tomava conta, convidativo, do quarto. Percebeu com facilidade, mas custou saber o que era aquilo que tomava conta dele. O computador estava ligado no canto do quarto, como que o chamasse para mais um dia de trabalho. Fugindo da rotina tomou uma ducha demorada, sem nem mesmo consultar a caixa de entrada antes. Tomou café com sua mãe, coisa que não lhe era comum. Depois de alimentar seu ramster que ficava na despensa apertou o CTRL R. Nenhuma mensagem. Sorriu com o canto dos olhos. Percebeu que seu quarto estava escuro, não entrava luz à semanas. Desligou o computador, tirou o fio da tomada e abriu a persiana e a janela. De repente, um mundo novo se atualizou diante dele.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

No Avião (Rascunho)

Como antecipação da viagem que farei em janeiro para Argentina criei esse post. É uma tentativa de apaziguar as expectativas da viagem. Vou passar um mês em Buenos Aires estudando e passeando. Espero escrever muito por lá também.

Devido aos últimos atentados que ocorreram em aviões, o vôo que peguei de Curitiba à Argentina estava vazio, somente algumas poltronas dispersas estavam ocupadas. Nunca havia viajado em avião e a expectativa era grande. Meu irmão havia dito do frio na barriga que da quando o avião decola e minha mãe do medo que da quando a turbulência é forte. Mas minhas expectativas eram grandes. Uma vez vi em um filme ou comercial um avião voando acima de um temporal. Um avião nadando sobre um mar de nuvens carregadas banhado por um sol grandioso e imponente. Me disseram que daqui até a Argentina eu nunca iria ver isso por causa da baixa altitude do vôo. Mas quem sabe? Talvez o piloto errasse a rota e nós fossemos parar em um lugar completamente diferente do destino. A mim não faria diferença. Quando se está fugindo não faz diferença para onde vai, contando que seja longe.

Para dizer a verdade não senti nada diferente durante a viagem. A impressão que tinha de que iria acontecer algo grandioso, uma vista estupenda que ficaria marcada em mim para sempre, uma visita rápida ao minúsculo banheiro com uma aeromoça, quem sabe, ou até mesmo um desses atentados que significaria o fim da minha vida, nada disso aconteceu. Para falar a verdade gosto mais é de viajar de carro pela serra onde há mais paisagens bonitas que aquela imensidão azul.

Nas poucas vezes que viajei, o que mais me chamou a atenção foram as ruas e a arquitetura dos prédios. Não pela arte presente nelas mas sim por ser um lugar que vi pela primeira vez, onde nunca botei os pés antes e que difere muito dos lugares da minha cidade natal. Logo que o avião pousou e eu olhei ao redor fui tomado por essa sensação de estréia, de primeira vez. Um lugar completamente diferente onde eu poderia iniciar uma nova vida.

Minha primeira vez no amor foi um tanto tarde. Fui sempre muito ligado à família, o que talvez não justifique, mas sempre preferi ficar em casa com meus pais e irmãos do que sair em bares à caça de mulheres. Gostava de assistir filmes nos fins de semana, principalmente quando meus pais e meu irmão saiam e só ficava eu e a Isabel, minha irmã, em casa. Assim cada um podia se esticar em um dos sofás e assistir o filme mais confortavelmente. Às vezes fazíamos pipoca na panela mas era raro porque nós dois tínhamos preguiça de lavar a louça depois. Era bom porque nós gostávamos dos mesmos filmes de aventura e tínhamos o costume de ver-los mais de uma vez. Desde que essa onda de violência se instalou no país não parava filmes novos nas prateleiras das locadoras. Acho que só meus pais tinham ainda a coragem de irem à restaurantes. Tivemos também nossa fase de ver filmes de romance. Durante pelo menos seis meses foi o que mais assistimos, talvez só o que assistimos. Mas o que realmente era uma unanimidade entre nós dois eram os filmes com avião. Desses que os pilotos morrem e um cara qualquer pousa o avião com precisão, ou aqueles em que um grupo terrorista invadia o vôo e também um qualquer salvava a todos. O que nos encantava era que a gente podia ser um daqueles qualquer.

Foi somente em Isabel que eu pensei durante o vôo. Quando o comandante do vôo liberou o uso de aparelhos eletrônico eu liguei meu rádio em um CD do Couting Crows. Como ela odiava aquele CD! Como um tributo à ela passei a ouvir PJ Harvey que era algo que nós dois gostávamos de ouvir. Fechei os olhos e comecei a lembrar da infância.

Uma infância passada totalmente na cidade. Raramente descíamos a serra para ir à praia, e era a cidade o nosso refúgio. Todos aqueles prédios altos, os tons de cinza, o trânsito, a fumaça, até as pichações nos agradavam. Uma vez uma colega de classe me disse que todos tem um lugar especial, aquele que é só nosso. O nosso lugar era uma praça perto de casa. No fim das tardes de calor e sol as crianças lotavam a praça, brincavam no parquinho com suas mães e babás. Mas era nos dias nublados e chuvosos que nós gostávamos de ir para lá. Sentava cada um em sua balança e ficava lá, sem conversar, sem se olhar, com os olhos fixos no chão aproveitando daquele silêncio comunicativo.

Isabel sempre foi sem dúvida minha melhor amiga. Nosso outro irmão era muito mais velho e Isabel e eu nascemos quase juntos. Minha mãe vivia invocada com os colégios que nós estudávamos, implicava muito com os planos pedagógico e assim nós mudávamos muito de colégio. Era difícil fazer amizades duradouras, então desistimos e nos refugiamos um no outro. Não sentíamos falta de mais nada. O que um não tinha o outro supria e assim passamos nossa infância e nossa vida.

Com a chegada da adolescência as coisas começaram a mudar. Eu passava boa parte do dia trancado no banheiro e Isabel ficava cada vez mais isolada no seu quarto. Fui saber mais tarde que ela escrevia um diário que eu nunca cheguei a ler. Mas nosso passeio à praça em dias nublados e chuvosos continuava. Muitas das vezes um dois quebrava o silêncio. Ela dizia coisas pesadas, meio filosóficas. Era uma menina inteligente e acho que era isso que lhe dava aquele ar taciturno, semblante sempre fechado e pensativo. Eu lhe perguntava coisas sobre as mulheres e algumas vezes pedia que ela me apresentasse alguma colega para eu sair. Parei de pedir isso porque a deixava nervosa, inquieta.

A aeromoça me trouxe uma bebida, um suco meio quente de laranja e encostou sua mão na minha. Aquilo me deu um flashback imediato do dia em que assistimos “Assédio Sexual” na tevê. O Júlio, nosso irmão, se esticou no sofá grande com duas cobertas até o pescoço. A Isabel ficou brava porque ele não quis ficar com o sofá menor mas não adiantou: ficamos nós dois a dividir o sofá de dois lugares, cada um sentado num gomo com uma coberta de lã. O filme era muito chato. Talvez eu nunca fosse lembrar dele não fosse o que aconteceu durante o filme. O Júlio roncava desde os dez primeiros minutos. Eu pensava em fazer o mesmo quando, em uma cena de sexo entre Michael Douglas e Demi Moore, a Isabel me segurou a mão e apertou forte. A cena durou pouco e logo que acabou ela soltou minha mão, levantou-se e foi para o quarto. Eu não soube o que fazer. Apertei o pause no controle e esperei que ela voltasse mas não voltou. Me quedei em um silêncio quase total e procurei acalmar minha respiração com o ressonar do meu irmão mas não era possível. Meu corpo tremia, minhas mãos suavam e eu ainda tinha aquela ereção que me preocupava pois não sabia se era por causa da cena forte ou pelo que tinha passado na sala. Mas afinal, o que foi que passou naquela sala? Seria só uma coincidência, ela segurou minha mão como um boa noite silencioso ou era algo mais significativo?

Na manhã seguinte, quando acordei ela já havia ido ao colégio. Tirei o Júlio do sofá onde tinha dormido e preparei meu café da manhã. Chegando no colégio evitei ao máximo passar pela sala de minha irmã. Ainda não sabia lidar com aquilo que havia passado. Nem sabia se havia passado algo realmente. Foi uma manhã de tortura. Durante as aulas não consegui me concentrar em nenhum momento e de quando em quando tinha que lidar com uma excitação repentina que agora tinha certeza de não ser pelo filme. Ela é minha irmã, pelo amor de Deus! Eu me repetia aquilo como se fosse apaziguar as coisas mas só pioravam. Ela é minha irmã...

Saí do colégio antes de começar a última aula. Fui a pé como de costume, não me importando com o tempo que estava gastando. Não tinha pressa de nada, estava absorto em meus pensamentos. Quando tentava atravessar uma rua fui surpreendido por um carro que passava em alta velocidade e buzinou como um louco porque eu o fiz desviar de mim. Por um momento desejei que ele tivesse me acertado, assim eu iria parar no hospital e teria outras coisas para povoarem minha mente.

Quando cheguei em casa somente ela estava lá. Não usava o uniforme e logo percebi que não havia ido à escola. Encontrei ela na cozinha e ficamos cada um de um lado da mesa, frente a frente, nos encarando por um longo tempo. Aproximou-se um passo de mim de forma acanhada e eu fiz o mesmo. Mas um longo silêncio. Um longo e significativo silêncio. Naquele momento tive a sensação de que não que éramos irmãos, que nunca havíamos sido, que nunca ficamos sentado lado a lado na praça durante nossa infância. Foi o que me fez avançar em direção dela tomado de desejo. Ela fez o mesmo e em meio caminho nos encontramos e nos beijamos ferozmente. Tudo se desanuviou em minha mente e eu só tinha pensamento para seu corpo, seus lábios, seus seios. Parecia ter esperado por aquilo durante toda minha vida, mas ela só havia deixado de ser minha irmã na noite anterior. Agora eu a tinha nos braços, ela me tinha nos braços.

Como se ao mesmo tempo nos déssemos conta do que estávamos fazendo nos afastamos. Sua cara agora era de pânico, talvez nojo, e algumas lágrimas brotavam de seus olhos. Não, era medo, vergonha. Ela correu para o quarto e eu não quis impedir. Queria me ver livre dela, de toda aquela situação. Sentei em uma cadeira e deitei a cabeça sobre a mesma. Assim fiquei por muitos minutos. Os outros chegaram e, como percebessem meu olhar abatido e distante se puseram a perguntar coisas, o que havia acontecido. Me recompus, disse que não me sentia bem e subi para o quarto. Ao passar por seu quarto vi minha irmã estendida sobre a cama, o edredom e o chão sujos de sangue e uma lâmina estendida sobre a cama.

Antes de o avião pousar eu já tinha a certeza de que fugia daquele barulho de sirenes que tomaram conta daquela tarde, do policial que me interrogou durante um bom tempo e da imagem dos meus pais e do Júlio em estado de choque, sentados nos sofás sem entender o que havia acontecido.

Dois meses depois daquele dia eu desço as escadas do avião e desejo que tenha deixado nas nuvens tudo o que passou. Sonho ser capaz de poder esquecer, mas quando apanho minha malas na esteira sinto que ela esta comigo, sinto seu hálito no ar e percebo que de certas coisas não há como fugir.